sábado, agosto 19, 2006

Encontrava-me morto e era só.

Esta noite eu sonhei que tinha morrido.
Eu já havia tido sonhos onde pessoas próximas a mim morriam.
Uma vez sonhei com a morte da minha mãe e outra vez com a da minha irmã. E foram sonhos horríveis. Sonhos que me encheram de desespero.
Também já sonhei que tinha matado todos os meus amigos! Inclusive aqueles que eu mais amo. Matei-os a sangue-frio com uma arma de fogo.
E devo confessar que foi algo que não me perturbou em nada e há bem da verdade foi uma experiência bem agradável e até mesmo hilariante por assim dizer.
Mas nenhum desses se compara ao que tive esta noite.
Não foi desespero e não foi satisfação.
Foi apenas uma sensação de não existir, um sentimento de vazio, e só de vazio.
Em meu sonho eu morri num acidente de moto. Uma batida frontal com um caminhão.
E se não estou enganado; eu pilotava a moto e carregava na garupa um passageiro. Mas não me recordo quem era esse, tenho a impressão de que era um antigo professor ou talvez um colega de trabalho (e no meu sonho ele também morreu).
Lembro-me com clareza dos instantes antes de bater no caminhão. Pois foi exatamente igual ao que eu já senti e pensei em situações reais. Algo como quando caímos de um muro ou deixamos um copo cheio de algum liquido derramar. Algo como: _ O que foi que eu fiz? Não tem volta, esta acontecendo e tudo o que posso fazer é esperar terminar.
E no meu sonho foi exatamente assim.
Encontrei-me em rota e colisão com o caminhão e nada podia fazer a não ser esperar pela batida.
Senti um frio no estomago, um tipo de paralisia e então... Sem som, sem imagem e sem sentir nada. Somente um silêncio. Terminou.
E seguida; como o retorno de um desmaio, ou o despertar de um sono profundo, tudo foi voltando: A claridade, as pessoas, o som dos motores, as cores, as vozes e o barulho de passos bem próximos à minha cabeça.
Então me vi deitado no chão e do meu lado o meu colega. Nos dois imóveis.
Percebi que havia muita sujeira em mim, havia sujeira em minhas unhas. E eu odeio sujeira nas unhas.
Eu vi dois capacetes no chão. Eles quase nem lembravam mais capacetes, estavam abertos como se fossem rosas, e estavam muito sujos de vermelho. Eu reconheci o meu, ele estava ali destruído. E fiquei pensando nisso. Meu capacete, todo aberto, como uma rosa, e ele é resistente, de ótima qualidade, paguei caro por ele. E ele não resistiu, estava ali no chão, cheio de sangue, coberto de vermelho, igual a uma rosa. Foi nesse momento que me ocorreu que se o capacete tinha saído da minha cabeça e havia tanto sangue nele, então eu devia estar muito machucado, e o meu colega também.
Eu ainda estava ali deitado, com as unhas sujas, a roupa estava toda rasgada, e eu ainda não me mexia, então pensei em como as cores estavam fortes e vivas, era um colorido igual ao dos desenhos animados.
E eu não me mexia. Por que eu não me mexia? Fiquei me olhando e desejando que eu me mexesse a qualquer momento, comecei a pensar no caminhão. Pensei no meu capacete; ele estava fechado e era resistente, mas ainda assim, tinha saído da minha cabeça, estava destruído, tinha muito sangue, e eu ainda não me mexia, ninguém me tocava; meu colega também não se movia. Pensei no metal do caminhão; pensei na carne dos meus braços; na velocidade, no capacete novamente, nas minhas unhas sujas e meus lábios abertos e cortados.
E nada... Nem um movimento sequer... Eu estava morto.
Por isso eu não tinha me mexido ainda, por isso eu estava ali me vendo, por isso ninguém tocava em mim. Era porque eu estava morto.
Então pensei: _Mas que porra! A minha vida inteira deveria ter passado em frente aos meus olhos, eu deveria estar vendo uma luz ofuscante no fim de uma passagem escura, ou então eu deveria estar em um lindo jardim com vários pássaros cantando.
Mas não! Não tinha musica nenhuma; não tinha êxtase nenhum; não tinha droga nenhuma de anjo; não tinha fogo do inferno; não tinha risada do capeta; não tinha nada.
Eu estava morto, e estava consciente fora do meu corpo. E era só isso, eu não me levantaria, eu não voltaria para casa, eu não iria mais fazer ensaios com a banda, eu não iria terminar de ler o livro que deixei sobre o criado mudo, eu não beijaria mais a Jezebel, eu não falaria mais com meu irmão, eu não veria mais minha amiga... Eu não faria mais nada. Eu estava morto e era só.

segunda-feira, agosto 14, 2006

O fim dos dias que nos são roubados.

Você não entende não é mesmo?
Ninguém tem culpa... Ninguém!
Isso nem sempre é uma escolha.
E decerto eu não pertenço a esta realidade.
(Eu bato a cabeça contra a parede).
(Espero que isto me tire os sentidos).
(Sentidos? Isto deve ser uma piada).
Porque este é meu limite.
Não posso continuar a me arrastar assim.
Por estes dias tão doentios.
Esta jaula cheia de conforto está me matando.
E você sabe o quanto eu odeio isto.
Sabe o quanto me machuca ver estes animais assim.
(Atiro-me seguidamente contra a parede).
(Talvez a dor física ultrapasse a espiritual).
(Ou talvez eu só esteja conseguindo assustar você).
Porque este foi meu limite.
E aqui neste ponto eu rompo.
Olhe para mim, eu sou todo vísceras e coração.
(As lágrimas queimam para sair).
(Eu não controlo mais o choro).
(Eu não contenho mais...).
Você deveria ler as coisas que eu escrevo.
Elas dizem muito de mim.
Todo esse egoísmo me empurrando para dentro da caixa.
Eu não aceito mais... Eu... Não... Aceito... Mais!
(Minha cabeça dói muito).
(Tenho a nítida sensação de que vou morrer).
(Bem aqui, neste canto úmido).
Tentei desesperado dar uma solução a isto.
Impedir que este dia também fosse roubado.
Mas não... Já era tarde demais.
Você nunca pára antes.
Não antes de eu me esvair.
Não antes de eu sentir que vou apagar!
Não antes de me torturar com essas lágrimas.
(Eu berro muito... Muito).
(Porque a algo gritando dentro de mim).
(Sinto o homem revoltado se atirando contra as paredes da caixa).
Deixo você saber com todas as palavras...
Que eu me permito tudo... Que não seja a morte.
Mas com exceção dela... Permito-me tudo.
Eu não posso mais voltar.
Este é o lendário ponto sem retorno.
(Eu peço para você ir embora).
(Caminho entre os meus irmãos).
(Eles temem me olhar nos olhos).
Este recinto está tão silencioso.
Em nada lembra a atmosfera que deixei há quarenta minutos atrás.
O garoto pônei esta aqui.
Tão fora do ar quanto eu.
A luz já não é bem vinda nesta sala.
O homem arrombou a caixa.
Deve ter sido ele que estilhaçou todo esse vidro.
Eu beijo docemente o garoto.
E nessa escuridão toda encontro à mão dela.
Ela também está fora do ar.
Deve ser por isso que teve coragem de entrar aqui.
(Eu tento sussurrar algo).
(Eu digo que gosto dela).
(Gosto dela porque ela me permite ser eu mesmo).
Enfim, todos se vão. Deixaram-nos sozinhos, eu e o garoto pônei.
Pediram-nos para não fazermos nada de errado.
E não faremos.
Embora eu não saiba o que eles entendem por não errado.
E a bem da verdade isso pouco nos interessa.
Não interessa a mim...
E nem ao homem que saiu da caixa.

Saturnine